Assim nasce um Colorado
O texto é longo, mas vale a pena ser lido!
O 23 de abril despertou diferente. O celular bipou, indicando uma nova mensagem, que simplemente dizia: " quero ir. A. "Confesso que nesta hora uma emoção diferente tomou conta de meus pensamentos: filho de simpatizante do rival da azenha, A. estava aceitando um convite meu feito em tom de brincadeira no dia anterior.
Por motivos diversos ele poucas vezes, em seus 9 anos de vida, foi a jogos de futebol. E nesses poucos, sempre no campo do rival. Ele queria, agora, conhecer o lado vermelho da força. Para quem tinha como lembrança de maior conquista de um time, um jogo cantado em prosa, verso e dvd que, resumidamente, narra a história de uma volta apertadíssima a elite do futebol brasileiro conquistada sobre um medíocre e pífio adversário, o fato de querer adentrar no Gigante erguido a beira do rio e sentir como era o " outro lado ", não é tão estranho assim, talvez motivado pelas minhas narrativas emocionadas que, ironicamente, nem sempre se compunham de vitórias e conquistas mas de derrotas e perdas que enrijeceram o o coração de todo colorado, tal como o meu primeiro grenal no Gigante quando, aos 7anos de idade, não entendia e achei estranho aquele silêncio sepulcral ao meu redor e aquela pequena porção da torcida do outro lado do estádio que, vestida de uma cor diferente, pulava e comemorava dentro da nossa casa o quarto gol do seu time. Ainda estavam por vir a derrota para o Nacional em 80...... a sensação de impotência de ver Bobô levar a taça do Brasileirão 88 para a Bahia e, meses mais tarde ver mais uma vez a Libertadores tão sonhada escorrer por entre os dedos e pelo pés de Nilson, o mesmo matador que deu uma das maiores alegrias da vida alvi rubra, no grenal mais emocionante da história.
Ele achava estranho o fato de ter passado e agüentado toda a minha infância e adolescência nos anos 80 e 90 sendo taxado de perdedor. De torcedor do time do quase. Do eterno vice. Daquele time que, parecia, estava fadado a viver sempre a sombra das grandes conquistas. Como era duro e difícil ir para o colégio nas segundas feiras após mais um domingo de jogos sabendo que seria alvo de todo tipo de chacotas e, pior, ver seus aliados pouco a pouco desistirem da luta e se juntarem aos inimigos.
Lembrava a ele que sem fé, perseverança e muito trabalho não chegamos nunca a vitória. Eu, e toda Nação Colorada tinhamos agüentado todo tipo de flauta e escárnio de uma torcida adversária que, marcada pela soberba e arrogância, nunca nos deixava em paz. E tivemos fé. E toda essa perseverança foi recompensada no apito final de Horácio Elizondo na fria e chuvosa noite de 16 de agosto de 2006 quando, finalmente a América estava definitivamente conquistada. E eu novamente estava lá, chorando como uma criança e relembrando todos martírios passados naquele mesmo Templo.
Alegrias maiores ainda estavam por vir quando, meses mais tarde, no outro lado do planeta, o dream team do futebol mundial foi abatido pelo exército vermelho que, vestido de branco e liderados pelo agora Capitão do Mundo, Fernandão, deu a maior mostra do que a humildade e o trabalho perseverante podem nos proporcionar. A vitória sobre o Patchuca, coroando triplamente um ano de glórias, foi a cereja de um bolo degustado em Dubai quando, mais uma vez o mundo viu o Gigante se erguer e abater mais dois dos maiores times do planeta.
Pois A. estava disposto a ver, ao vivo e a cores, se tudo isso era verdade. Se o arrepio que eu dizia sentir quando o escrete colorado adentrava na arena erguida a beira do rio tinha fundamento. Se o rugido vindo das arquibancandas pintadas de vermelho sangue ecoava no coração de cada um dos presentes e embalava os 11 guerreiros dentro de campo rumo a mais uma vitória.
E, definitivamente, 23 de abril era um dia diferente. Era dia de Jorge. Dia de um Guerreiro. E, como tal, o time escarlate precisaria lutar como um Leão e fazer o quase impossível. E lá estávamos, sob a lua de Jorge e no lugar onde sempre fiquei desde que me conheço por Colorado e de onde assisti as piores derrotas e as maiores vitórias, quando os 11 guerreiros pisam retumbantes o relvado verde, vestido com o manto branco das grandes e memoráveis conquistas e o Gigante, como que tomado por um êxtase coletivo, pula e grita sem parar. Olho para A. e vejo seus pequenos olhos brilharem ao verem aquela cena.Nesse momento ele se dá conta que a sua camiseta, sugestão de imparcialidade de uma torcedora rival, mas preocupada e zelosa mãe, era do mesmo branco do exército que entrava em campo. Ele toca o branco, me olha e sorri. Estava apresentado à maior torcida do Rio Grande e a mais apaixonada do Planeta.
O que estava previsto para ser difícil ganha tons quase trágicos. A bola não tinha percorrido mais do que poucos metros quando um dos guerreiros de branco tomba desacordado. A ambulância ainda estava a beira do palco verde quando o adversário, aproveitando a preocupação do time colorado pelo companheiro abatido, abre o placar e desenha aquilo que era mais temido por cada um dos 41 mil presentes: a necessidade sobre-humana de fazer 4 gols em 88 minutos. A. me olha assustado e pergunta: " e agora ? ". "Agora", eu respondo, "é que tu vais saber porque eu sou e porque tu vais ser Colorado". Confesso que essas palavras saíram como que em golfadas de desabafo. Eu também estava abatido pelo absurdo. Mas ainda existia um fio de esperança. E o torvelinho humano instantaneamente começou a ecoar seus gritos e cânticos de guerra. A. ao meu lado sobe na cadeira da social para ter a visão do espetáculo que agora iniciava, por que, daquele momento em diante ninguém mais lembraria que existem cadeiras no Beira Rio. A ordem era empurrar o time e, sentados, não se chegaria a lugar algum.
Quando a bola sobra para o pé direito de Andrézinho e a rede da goleira do gigantinho estufa, me lembro de uma outra virada histórica que também presenciei e que iniciou ali, em 1989, quando Nilson, comandado pelo jovem Abel Braga e tendo como jogador adversário outro jovem, Bonamigo, que no momento atual estava a beira do gramado com a missão de segurar um resultado de 3 a 0 para o time, decreta a passagem para a final de um campeonato Brasileiro em um grenal que a história cunhou de secular. O Gigante, que já estava desperto, emite um rugido que faz tremer Porto Alegre. Os sismógrafos que no dia anterior registraram 5.2 na escala Richter de um tremor vindo a mais de 200 km da costa brasileira, agora captavam algo mais próximo. Captavam a fúria de 11 leões e 41 mil ensandecidas testemunhas que iniciavam naquele instante mais uma epópeia vermelha. A. parece não acreditar. Me olha. Sorri. Eu respondo com outro sorriso um abraço e, olhando nos seus olhos, penso mas não digo: " tu vais ver o que é sofrer junto com um time, guri. E queira Deus que depois de toda essa tempestade o sol brilhe com todo o esplendor".
E não demorou muito para que os primeiros raios desse sol aparecessem no horizonte vermelho. Aquele que atende pela alcunha de Indio e que, se assim o fosse, seria um legítimo pele-vermelha, mais uma vez faz explodir o Gigante que balançava intrépidamente. Dessa vez A. não ficou indiferente. Ao ver aquela massa vibrar e no silêncio ensurdecedor do grito que ecoava na beira do Guaíba, foi mais um que sentiu: vamos conseguir. Eram 4. Só faltam mais dois. Seu sorriso e a tímida, mas primeira e sincera vibração com um gol do Colorado, denunciavam isso.
A expulsão de dois adversários e um dos nossos guerreiros pôs mais fogo naquele caldeirão que poucas vezes fez jus a essa definição. Aquele que tinha por missão substituir o goleador colorado da temporada e aparentemente insubstituível Alex, desloca o arqueiro adversário e decreta: falta só mais um. O predestinado André, que sonhou com um gol de pé direito acabava de fazer o seu segundo do dia. O Colorado impetuosa e furiosamente avançava sem dó sobre o adversário que, acuado, vê sua área ser invadida por todos lados e de todos os jeitos. A. nesse momento, já entoa junto com a nação alvi rubra o " Vâmo - Vâmo Inter ", me abraça e não fala nada. E não precisa. Eu sabia que mais um colorado estava nascendo ali naquele momento.
O segundo tempo veio logo, na continuação de um intervalo em que, parecia combinação, a torcida não parou um minuto sequer de entoar seus cânticos, como que para não deixar esfriar o já fervente caldeirão vermelho. Faltava mais um. E era atrás desse gol que nós iríamos. E ele quase veio na meia bicicleta do menino gigante Nilmar. Seria demais para os corações colorados um golaço daqueles. Faltariam aparelhos de reanimação cardíaca nos postos médicos do Beira Rio, que já haviam atendido um dos 41 mil presentes. E, do meu lado, um jovem coração de 9 anos, estava se tornando definitivamente vermelho.
E ele demorou um pouco mais que o esperado, mas chegou. Magrão, acalma a bola no escudo tríplice coroado e bate com categoria em direção a goleira iluminada do placar. Àquela mesma que ainda reflete as cabeçadas certeiras de Dom EliasFigueroa e Paulo César Tinga. E quis o destino que ali fosse o gol da classificação. Num misto de alegria, êxtase e admiração a nação alvi-rubra se abraçava e chorava e, dentre eles, estava mais um que, entre lágrimas que chegaram a me assustar, me disse, soluçando: " obrigado por me trazer aqui ".
E o tempo, aquele que até minutos atrás passava com uma velocidade espantosa passou a ser medido em horas. Os minutos se tornavam dias. Acuado e desesperado, o adversário se lançava ao ataque e, em uma desatenção do já exausto time escarlate, ataca fulminante em direção do gol defendido pelo gigante Clemer. A bola passa e o Beira Rio sente o pior. Um revés naquele instante decretaria o final de uma história com contornos heróicos de forma trágica. Mas era 23 de abril. Noite de Guerreiros e de lua cheia. E todos viram uma trave que, tal qual a lança de Jorge, apara milagrosamente a bola, que logo a seguir é abraçada com todas as forças por aquele que veste a camisa que um dia foi de Manga e Taffarel.
No meio desse turbilhão estava ele, o Capitão do Mundo, tal qual um maestro, orientando os guerreiros vermelhos. Faltava o gol desse predestinado. E ele veio. Faltava calar de vez o Dragão que horas atrás assombrava o Gigante. E Jorge, pelo corpo de Nilmar colocou a sua lança nas mãos do Capitão que decretou sua morte de forma definitiva em chute certeiro e, ajoelhado com as mãos elevadas ao céu, simplesmente falou, acompanhado de 41 mil previlegiadas testemunhas: " obrigado ".
E então Wagner Tardeli apontou o centro do campo. Os guerreiros de dentro do campo vieram saudar os guerreiros que os apoiavam. A comunhão de sentimentos era unânime. A. parecia estar em transe. Ele nunca tinha visto nada igual. Não falamos nada. O abraço fraterno entre, agora, dois verdadeiros colorados falaram mais do toda e qualquer palavra dita naquele momento.
Já passava das 2h do dia 24 de abril quando A. chegou em sua casa. Já na porta de entrada encarou a mãe, agora adversária que não sabia se ria ou chorava, e decretou:
"Como é bom ser colorado".
Relato do Colorado José Antônio na comunidade do Inter.
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