A Guarda desarmada
Eram conhecidos como Maninho e Feijão os garotos assassinados a tiros em São Leopoldo, pouco antes do último Gre-Nal no Olímpico. Ambos eram jovens torcedores do Internacional, sócios do clube e integrantes assíduos da Guarda Popular. Mais do que isso: ambos tinham famílias – e famílias essencialmente humildes.
Contam-me que Maninho vivia com os pais numa casa pequena e trôpega instalada às margens do Rio dos Sinos. Desde maio deste ano, a família vinha lutando para recuperar os móveis perdidos durante uma enchente que elevou o nível do rio em quase oito metros. Não por acaso, o enterro de Maninho teve de ser financiado por amigos e parentes. Até os integrantes da Guarda Popular entraram na “vaquinha” com cerca de R$ 800 em contribuições espontâneas. O dinheiro, porém, não trouxe Maninho de volta – apenas ajudou a dar-lhe dignidade na sua derradeira despedida.
Eis que chega o dia do Gre-Nal. Os colorados se espremem numa pequena lacuna das arquibancadas do Olímpico, acossados em ambos os lados por uma verdadeira horda tricolor. O Inter entra em campo e a Popular cumpre o protocolo de gritar o nome de todos os jogadores.
Desta vez, no entanto,há algo diferente: a torcida grita, também, o nome de Feijão e Maninho. É como se eles estivessem no gramado, vivos e fardados, prontos para ajudar o Inter a conquistar mais uma vitória. A homenagem é bonita, emocionante até. Mas recebe uma resposta vergonhosa.
Nas arquibancadas, um grupo de gremistas se aproxima da lacuna colorada e canta, despudoradamente: “Hei, Feijão, mijei no teu caixão!”.
Dá pra imaginar uma coisa dessas?
O que leva um grupo de pessoas a tripudiar em cima de algo tão doloroso?
Como é possível que uma “torcida” seja tão fria e desalmada?
Não se trata de “um ou dois desmiolados”, como gostam de minimizar os dirigentes gremistas. Não: a música mais infame já cantada no Olímpico sai da garganta de dezenas de torcedores, diria até centenas. Estão todos lá, pulando e cantando, dobrando-se às gargalhadas com a morte de dois garotos colorados. Gostaria de acreditar que esses torcedores são minoria. Mas não consigo. Na hipótese mais otimista, eles são uma minoria enorme, colossal. Seus gritos ecoam pelo estádio e nos estapeiam os ouvidos.
Provocam em nós, colorados, um mal-estar indizível. Para eles, a vida sofrida, as dificuldades e a indescritível dor que os pais de Maninho e Feijão tiveram de suportar não é o bastante. Também é preciso humilhar e destroçar, moralmente, o enterro de um dos garotos.
E quem disse que o espetáculo termina aí? Ora, basta Fernando Carvalho pisar no gramado do Olímpico e pronto: imediatamente, a “minoria” tricolor começa a cantar em peso, orgulhosa: “Fernando Carvalho foi pedalado!” – uma clara referência à vez em que ele foi chutado por torcedores do Grêmio no aeroporto Salgado Filho. A melodia, aliás, é a mesma de outra música bastante apreciada entre os gremistas; uma música que exalta o episódio em que uma garota da Guarda Popular do Inter foi baleada.
Nós estamos em guerra. Em guerra!
E sejamos claros: não há novidade nenhuma nisso. A tal guerra começou há anos. O que assusta é a dimensão que essa guerra está tomando. No começo, os confrontos se limitavam às músicas ofensivas, ao roubo de camisetas e bandeiras do lado rival e às brigas, muitas brigas – que aconteciam em todos os lugares, inclusive em festas, shows, shopping-centers e até no aeroporto. Com o tempo, porém, a guerra incorporou terroristas.
Eles existem em pequenos grupos armados e atiram para matar. Hoje,aparecem de surpresa, geralmente dentro de automóveis. Atiram e desaparecem. Foi assim com Maninho e Feijão. Foi assim, também, na véspera do último Gre-Nal, quando um grupo percorreu toda a extensão da Padre Cacique descarregando um revólver em direção ao Beira Rio. Que ninguém pense que o alvo era o estádio: naquele momento, integrantes da Guarda Popular almoçavam no local. Saíram ilesos graças aos pilares do Gigantinho, que usaram como escudo.
Mas há pelo menos uma boa notícia no meio de todo esse horror. Uma notícia surpreendente, capaz de nos fazer acreditar que o futebol, talvez, volte a ser uma das coisas que unem os gaúchos em vez de separá-los. A boa notícia é que, desta vez, a Guarda Popular não irá revidar. Não com armas.
Pois neste domingo, pouco antes da partida entre Internacional e Coritiba, a Guarda Popular deu início a uma “campanha pelo desarmamento”. Reunidos na Avenida Padre Cacique, os integrantes da Guarda fecharam o trânsito e ergueram uma imensa faixa com os dizeres: “Torcida que não usa armas”. A faixa desfilou pela rua e foi posicionada dentro do estádio, num local bastante visível. Ao mesmo tempo, a Guarda confeccionou três estandartes que mostravam revólveres cobertos com tarja vermelha. A mensagem era clara: não serão toleradas armas de fogo entre os integrantes da Guarda Popular.
“Só queremos alertar todos envolvidos no espetáculo futebol que tem uma matança pra começar e não queremos fazer parte disso”, explica um dos principais líderes da Guarda Popular, com quem eu conversei na semana passada. Ele me contou que, no dia em que o Beira Rio foi alvejado, alguns integrantes da Guarda pensaram em partir para o revide. “Tinham cinco armas lá depois dos tiros deles em nós. Era só concordar, entrava-se num carro, ia lá no bar deles e sentava o dedo”, diz.
Felizmente, a liderança da Guarda tomou uma decisão abençoada e baniu o tiroteio. Mais do que isso: estabeleceu que, a partir de agora, é proibido usar armas de fogo nos confrontos contra gremistas – que, infelizmente, deverão continuar acontecendo. É o que avisa o líder da Guarda: “Ao primeiro tiro nosso contra eles, nós [os líderes da Guarda] terminamos com a torcida!”.
Sei muito bem que não há mocinhos e bandidos nessa guerra de torcidas.
Tenho plena consciência de que colorados e gremistas são igualmente culpados pelo terror instaurado nos confrontos entre a Guarda Popular e a Geral do Grêmio. A guerra nasceu e cresceu em ambos os lados. Mas sinto uma reconfortante paz interior ao saber que a torcida colorada jamais cantou assassinatos em prosa em verso. Mais do que isso: sinto orgulho de ver a Guarda Popular do Inter – que é o verdadeiro pulmão do Beira Rio – entrando numa luta para evitar novas mortes. Dessa luta, tenha certeza, todos os colorados são aliados.
Vamos torcer para que os gremistas também sejam.
Texto: Andreas Muller
Fonte: Final Sports
Contam-me que Maninho vivia com os pais numa casa pequena e trôpega instalada às margens do Rio dos Sinos. Desde maio deste ano, a família vinha lutando para recuperar os móveis perdidos durante uma enchente que elevou o nível do rio em quase oito metros. Não por acaso, o enterro de Maninho teve de ser financiado por amigos e parentes. Até os integrantes da Guarda Popular entraram na “vaquinha” com cerca de R$ 800 em contribuições espontâneas. O dinheiro, porém, não trouxe Maninho de volta – apenas ajudou a dar-lhe dignidade na sua derradeira despedida.
Eis que chega o dia do Gre-Nal. Os colorados se espremem numa pequena lacuna das arquibancadas do Olímpico, acossados em ambos os lados por uma verdadeira horda tricolor. O Inter entra em campo e a Popular cumpre o protocolo de gritar o nome de todos os jogadores.
Desta vez, no entanto,há algo diferente: a torcida grita, também, o nome de Feijão e Maninho. É como se eles estivessem no gramado, vivos e fardados, prontos para ajudar o Inter a conquistar mais uma vitória. A homenagem é bonita, emocionante até. Mas recebe uma resposta vergonhosa.
Nas arquibancadas, um grupo de gremistas se aproxima da lacuna colorada e canta, despudoradamente: “Hei, Feijão, mijei no teu caixão!”.
Dá pra imaginar uma coisa dessas?
O que leva um grupo de pessoas a tripudiar em cima de algo tão doloroso?
Como é possível que uma “torcida” seja tão fria e desalmada?
Não se trata de “um ou dois desmiolados”, como gostam de minimizar os dirigentes gremistas. Não: a música mais infame já cantada no Olímpico sai da garganta de dezenas de torcedores, diria até centenas. Estão todos lá, pulando e cantando, dobrando-se às gargalhadas com a morte de dois garotos colorados. Gostaria de acreditar que esses torcedores são minoria. Mas não consigo. Na hipótese mais otimista, eles são uma minoria enorme, colossal. Seus gritos ecoam pelo estádio e nos estapeiam os ouvidos.
Provocam em nós, colorados, um mal-estar indizível. Para eles, a vida sofrida, as dificuldades e a indescritível dor que os pais de Maninho e Feijão tiveram de suportar não é o bastante. Também é preciso humilhar e destroçar, moralmente, o enterro de um dos garotos.
E quem disse que o espetáculo termina aí? Ora, basta Fernando Carvalho pisar no gramado do Olímpico e pronto: imediatamente, a “minoria” tricolor começa a cantar em peso, orgulhosa: “Fernando Carvalho foi pedalado!” – uma clara referência à vez em que ele foi chutado por torcedores do Grêmio no aeroporto Salgado Filho. A melodia, aliás, é a mesma de outra música bastante apreciada entre os gremistas; uma música que exalta o episódio em que uma garota da Guarda Popular do Inter foi baleada.
Nós estamos em guerra. Em guerra!
E sejamos claros: não há novidade nenhuma nisso. A tal guerra começou há anos. O que assusta é a dimensão que essa guerra está tomando. No começo, os confrontos se limitavam às músicas ofensivas, ao roubo de camisetas e bandeiras do lado rival e às brigas, muitas brigas – que aconteciam em todos os lugares, inclusive em festas, shows, shopping-centers e até no aeroporto. Com o tempo, porém, a guerra incorporou terroristas.
Eles existem em pequenos grupos armados e atiram para matar. Hoje,aparecem de surpresa, geralmente dentro de automóveis. Atiram e desaparecem. Foi assim com Maninho e Feijão. Foi assim, também, na véspera do último Gre-Nal, quando um grupo percorreu toda a extensão da Padre Cacique descarregando um revólver em direção ao Beira Rio. Que ninguém pense que o alvo era o estádio: naquele momento, integrantes da Guarda Popular almoçavam no local. Saíram ilesos graças aos pilares do Gigantinho, que usaram como escudo.
Mas há pelo menos uma boa notícia no meio de todo esse horror. Uma notícia surpreendente, capaz de nos fazer acreditar que o futebol, talvez, volte a ser uma das coisas que unem os gaúchos em vez de separá-los. A boa notícia é que, desta vez, a Guarda Popular não irá revidar. Não com armas.
Pois neste domingo, pouco antes da partida entre Internacional e Coritiba, a Guarda Popular deu início a uma “campanha pelo desarmamento”. Reunidos na Avenida Padre Cacique, os integrantes da Guarda fecharam o trânsito e ergueram uma imensa faixa com os dizeres: “Torcida que não usa armas”. A faixa desfilou pela rua e foi posicionada dentro do estádio, num local bastante visível. Ao mesmo tempo, a Guarda confeccionou três estandartes que mostravam revólveres cobertos com tarja vermelha. A mensagem era clara: não serão toleradas armas de fogo entre os integrantes da Guarda Popular.
“Só queremos alertar todos envolvidos no espetáculo futebol que tem uma matança pra começar e não queremos fazer parte disso”, explica um dos principais líderes da Guarda Popular, com quem eu conversei na semana passada. Ele me contou que, no dia em que o Beira Rio foi alvejado, alguns integrantes da Guarda pensaram em partir para o revide. “Tinham cinco armas lá depois dos tiros deles em nós. Era só concordar, entrava-se num carro, ia lá no bar deles e sentava o dedo”, diz.
Felizmente, a liderança da Guarda tomou uma decisão abençoada e baniu o tiroteio. Mais do que isso: estabeleceu que, a partir de agora, é proibido usar armas de fogo nos confrontos contra gremistas – que, infelizmente, deverão continuar acontecendo. É o que avisa o líder da Guarda: “Ao primeiro tiro nosso contra eles, nós [os líderes da Guarda] terminamos com a torcida!”.
Sei muito bem que não há mocinhos e bandidos nessa guerra de torcidas.
Tenho plena consciência de que colorados e gremistas são igualmente culpados pelo terror instaurado nos confrontos entre a Guarda Popular e a Geral do Grêmio. A guerra nasceu e cresceu em ambos os lados. Mas sinto uma reconfortante paz interior ao saber que a torcida colorada jamais cantou assassinatos em prosa em verso. Mais do que isso: sinto orgulho de ver a Guarda Popular do Inter – que é o verdadeiro pulmão do Beira Rio – entrando numa luta para evitar novas mortes. Dessa luta, tenha certeza, todos os colorados são aliados.
Vamos torcer para que os gremistas também sejam.
Texto: Andreas Muller
Fonte: Final Sports
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