Acho que fizeram um gol...
Bela maneira de encerrar uma mijada. Minha mãe chamando para eu ver um gol. Lógico, era do Barcelona! Até que demorou muito para os desgraçados comandados por Ronaldinho encaçaparem uma. Se tomássemos um só seria lucro.
Mas... como assim, mãe, “fizeram”? Será que ela não se tocou, desde o início da transmissão na TV, que o time de branco era o Inter e o grená, o Barcelona? Enquanto eu sacudia o pinto a respingar pelo vaso e arredores, ficava pensando em qual, diabos, dos times tinha balançado a rede. Mamãe bem que podia ser mais restrita e dizer que foi a equipe de branco ou a grená a ter feito o crime. Certo que era a grená. Era a que estava comemorando, não?
- Não sei... ó, vem cá...
Coisa de gente que não tem mais 20 anos. Não soube distinguir quem comemorava; só faltava essa! Mas gentes velhas têm seu valor em minha vida. Juntando a cueca azul-marinho, que tinha dado sorte na Libertadores, saí do banheiro às pressas, pensando em tudo o que eu passei até chegar aquele momento.
Aos 6 anos, eu já era Colorado e tudo o mais. Crianças gremistas e torcedores do Inter se davam bem. Jogavam bola juntos, andavam de bicicleta e, inocentes, cada uma sabia cantar o hino do clube rival. Era engraçado... um dia cheguei em casa, num desses apartamentos de condomínios da Guerino, em Porto Alegre, cantarolando que o Grêmio tinha sido campeão da América. Meu pai usou a psicologia necessária ao momento:
- Olha aqui, piá: se eu te pegar de novo cantando essa merda, te dou uma porrada!
Depois disso, o coração se tingiu em definitivo de vermelho. Foi nessa época em que ouvi meu primeiro jogo do time, via rádio. Estávamos em cima de um caminhão cretino e velho, eu e todos meus amigos, ouvindo um modorrento Inter e Flamengo, joguinho meia-boca da Copa União...
Cheguei à sala. Meu pai e minha mãe olhavam incrédulos para o televisor. Minha gata dormia no sofá, alheia ao mundo cruel que a rodeava. Criei coragem de olhar para a tela.
- ... Adriano é o nome dele!!!
Não... não. O nome estava errado. O narrador estava redondamente enganado. Esse jogador era do Inter. Ouvi direitinho um apito do juiz: na certa, iria dar impedimento. Claro, era isso. Tava impedido. Ninguém faria um gol no Barcelona de 2006. Sabe, era o mesmo time que não fazia poucos dias que tinha enfiado 4 gols no América do México. Jogavam por música. Todos aqueles clichês estapafúrdios e batidos e previsíveis sobre o futebol-arte... tudo ao mesmo tempo num time só. Juntando isso a uma sorte e um marketing danado, tínhamos, então, o Barça do Deco e do Ronaldinho.
Eu ouvi o jogo contra o América na escola onde dou aula. Meus alunos só diziam “gol... é o quarto do Barcelona”. Um sentimento de incredulidade tomou conta da parte vermelha da garotada. Me olhavam como quem procurando um alento, um consolo com o irmão mais velho. Será que dava pra vencer? Sei lá... o Inter já tinha enfrentado o time catalão algumas vezes na história, mas em épocas diferentes e sem essa rivalidade. Nada disso importaria no dia 17 de dezembro. Os registros são resetados nessas horas.
Era gol mesmo do Inter. O narrador queria dar metade da taça pro sujeito que passou uma bola medonha pro tal Adriano. Eu nem lembrava da existência desse Adriano. Depois que saquei que a torcida colorada tinha bronca com um tal de Gabiru. Eu não tinha. Para mim, ele era o cara que entrou no lugar do ídolo Fernandão e era, a partir de então, o melhor jogador do mundo.
Acho que dois dias antes, na mesma escola, rapazes do 3º ano fizeram um bolão. Um pila a aposta. Placares absurdos, como 5x0 para o adversário do Inter, foram comuns. Eu apostei no contrário:
— 1x0 pro Colorado. Pode anotar!
Risadas. Claro, né? O Inter estava sem seus principais jogadores, vendidos depois da campanha da Libertadores, e ia enfrentar o bicho-papão do futebol europeu.
Depois do gol, depois que a ficha caiu de verdade, saí correndo pela sala de casa, minha gata cruzou na minha frente com o pavor do barulho da mesa de centro (que recebera uma porrada minha, de faceirice), quase piso nela, tum, tum, tum, meus pés fizeram ruído pesado no chão, abri a porta da sacada, me empoleirei na grade e gritei, como se tentasse reativar o espírito de Colorados mortos:
— Cadê o Ronaldinho? Cadê o Ronaldinho? HHAhAhaHA...
O resto todo mundo sabe: cobrança de falta dando cagaço na trave do Clemer, golpes de vista para tirar chutes grenás, defesas impossíveis, amarração, marcação, nó na garganta e o inferno. Ganhei R$ 6,75 do bolão, gastei em xis e refri pros meus amigos de aposta e entrei para minha própria história. Tudo teve um desfecho feliz naquela manhã quente de dezembro. Talvez tenha sido tudo por meu avô.
Talvez tenha sido algo premeditado mesmo, como disse Veríssimo. Aquele Inter e Flamengo, que eu escutei na rádio quando criança, tinha terminado num decepcionante 1x1.
Texto do meu amigo, coloradaço e baixista da banda DESVIO PADRÃO nas horas vagas, MARAT! (Belo texto, heinhô, MARAT?)
0 Pichações:
Postar um comentário