Cem Mil Negrinhos
"Cem mil negrinhos, vestindo vermelho e agitando bandeiras. E nem um só era um negrinho rico. Em cada negrinho um sorriso muito branco. Cem mil sorrisos brancos. E todos orgulhosos, todos reis, esquecidos do que a vida não lhes dera em dinheiro, em oportunidade, em quase tudo. E depois, onze deles pisando a grama fofa, nova, caprichosamente desenhada, como caprichoso era o sonho que ia em frente. E o jogo começava. E a bola branca, de pé em pé, como em passe de mágica, tinha rumo certo. E os negrinhos do campo à rede e, os que estavam esparramados por toda a parte riam ainda mais seus cem mil sorrisos absolutamente iguais.
Quando o jogo ia em meio, tudo ficou quieto, tudo ficou mudo. O dia se fez noite, e também de surpresa, cem mil sóis ofuscaram os cem mil negrinhos. Eram as luzes. Foi aí que, lentamente, um dos tantos se encaminhou para a tribuna. O momento era solene, e foi solenemente que ele começou. E disse que estava entregando a casa a seus verdadeiros donos. Que tinha um grande respeito e gratidão pelos comandantes do feito. Mas que via, em cada tijolo, em cada muda de grama, o esforço do homem comum, do anônimo que não haveria de ganhar placas, de receber honrarias, de passar à posteridade. Disse tudo de forma solene, mas simples. E depois de dizer, descerrou a placa: 'Ao povo do Rio Grande, o Internacional, agradecido, entrega a Casa do Povo'.
Alguém protestou. Casa do povo? E os legislativos, as câmaras, as assembleias? Cem mil negrinhos responderam em coro dizendo da autenticidade da escolha. Aquele estádio era a consagração de um candidato. Cada tijolo acrescentado um voto perpétuo de confiança. Ali estava um palácio erguido sem impostos, pelo esforço comunitário a que ninguém fora obrigado. Um jornal que o jornaleiro vendera pensando no Inter, uma camisa que o homem da rua não havia usado pois, sem camisa, qual o homem da lenda, era mais feliz e mais colorado, e assim por diante".
"Cem mil negrinhos deixaram a casa nova para outros cem mil negrinhos entrarem, depois. Não há conta os donos que aquela casa tem. E todos, os que saíam e os que entravam, nas camisas vermelhas traziam um distintivo. O distintivo era mais do que um símbolo. Era um desafio. Desafio que os incrédulos lançaram ao povo para, mais uma vez ficarem sabendo, definitivamente, de que com o povo não se brinca. Do brinquedo dos outros, da boia cativa, eles fizeram um ideal, e o ideal enfeitou uma cidade, orgulhou um Estado, assombrou um País.
Acordei. No dorme-desperta de após sono, a procissão dos negrinhos continuava. E não tentei colocar brancos, ali. Eu gosto de gente, preta, amarela, pouco importa. E os pretinhos de meu sonho, mais do que ninguém, representavam este povo sofrido, de noites insones, de esperanças muitas e de dinheiro pouco que fez o Beira-Rio, a Boia Cativa, a Casa do Povo. E, palavra, sonhos assim não deveriam terminar."
Mendes Ribeiro
Suplemento Especial de Zero Hora "Gigante Beira-Rio"
05 de abril de 1969, página 2
Dica do Raul, a Enciclopédia Colorada, via Orkut.
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